Esta belíssima expressão de Platão – “o nosso olho é visto na pupila de outro olho” – manifesta a mundividência e sagacidade do (enorme!) Platão (filósofo grego do século V/IV a.C.). Na sua perspectiva antropológica e filosófica, Platão ensina-nos que é o outro, particularmente aquele que me circunda e que maior intimidade tem comigo, que me revela, me faz descobrir e saber quem eu sou e o que dou a conhecer através das minhas atitudes, através dos meus olhos. Isto é belo! Parece que o outro se encontra junto a uma janela tapada com um cortinado. E ao retirar a cortina, ao descortinar, eis o espasmo e o espanto: somos vistos como somos, como somos no salão interior da nossa vida e do nosso ser.
É fascinante pensar a vida nesta perspectiva de duplo dinamismo: permitir que nos vejam e, permitindo, descobrir o que para nós (ainda) está oculto. O outro, assumindo as suas idiossincrasias, as suas histórias, as suas vivências, as suas ideologias e as suas circunstâncias que o marcam e o definem, faz-me ver, por um lado, o que ele vê de si em mim, projectando-se como se os meus olhos fossem os seus, e, por outro lado, desvela-me e revela-me o que ainda não fui capaz de descobrir em mim ou que nem imaginava que pudesse existir em mim. Louis Lavelle (filósofo francês da primeira metade do século XX) afirmava que “compreender alguém é descobrir em si mesmo todos os movimentos que nele se observa, é abandonar-se a eles por um momento para que, quando se pensa em segui-lo, seja a si mesmo que o siga. Acontece que vamos à frente deles. Os seres não podem conhecer-se separadamente, mas apenas por meio de uma comparação mútua que revela as semelhanças e as diferenças entre eles”.
Por isso, é simultaneamente desafiante e fascinante este processo. Continua Lavelle: “conhecer-me a mim mesmo é fazer de mim outro e me confrontar com o outro. Conhecer-te é penetrar-me e encontrar-me me ti: descubro em ti um espetáculo de um acto que só apreendo em mim mesmo no seu puro exercício. Assim, nunca olho para o outro que não seja o reflexo de mim mesmo, cujos traços às vezes são opostos e complementares aos meus, às vezes mais pronunciados e às vezes mais atenuados”.
É de singular curiosidade perceber que cada um de nós devolve ao outro a sua própria imagem mais ou menos fiel à realidade, envolvendo-a por um conjunto de personagens que, consciente ou inconscientemente, vamos acoplando, como se de máscaras ou de capas se tratassem, à nossa própria identidade, usando-as mediante as circunstâncias e/ou as necessidades que se impõem ou se exigem. O próprio Lavelle sagazmente afirma que “são vários as personagens em cada um de nós: uma personagem de vaidade que se reduz ao espetáculo que tenta dar e que tem para os outros apenas um olhar de desprezo e ciúme; outra personagem cheio de timidez e ansiedade, com vergonha de chamar a atenção para ele, mas porque sente dentro de si um outro personagem ainda, mais profundo e verdadeiro que parece sempre fugir dele e a quem a personagem que ele mostra nunca cessa de trair”.
Interessante esta visão de Louis Lavelle. Está a ser para mim uma bela descoberta. Porém, na minha muito humilde opinião, Lavelle peca por ser demasiado materialista e fenomenológico, sem transcendência, sem compreender o mistério do dom e da graça, ou seja, sem compreender que a actuação de Deus interfere, positiva e substancialmente, nas vidas de cada um de nós, modelando-nos, transformando-nos e revigorando-nos no único e verdadeiro Amor. Assertivamente, o Papa Bento XVI confirmou na sua própria vida que o amor “é cuidar do outro e preocupar-se com o outro. Já não procura a si mesmo, mas anseia pelo bem do ser amado: torna-se renúncia, está disposto a sacrificar-se, mais ainda, procura-o”. Saibamos nós buscar incessantemente este amor que dá sentido ao sentido da vida.