Gostava de fazer esta reflexão a partir do seguinte trecho do Evangelho de São Lucas: “Tende cuidado convosco, não suceda que os vossos corações se tornem pesados com a intemperança, a embriaguez e as preocupações da vida e esse dia não vos surpreenda subitamente como uma armadilha” (Lc 21, 34). Gosto, em especial, de ler o último Evangelho de cada Ano Litúrgico. Este texto sagrado gerou em mim a consciência acerca do perigo em pensarmos que somos, apenas e só, personagens da nossa própria vida ou da nossa própria história. Julgamos que a nossa identidade está fora de nós e, por isso, entramos numa corrente sem fim de fazer e só fazer. Isto revela que não nos amamos a nós mesmos. Como assim não nos amamos? Na verdade, o fazer é sempre acto consequente do ser, e se não amamos o que não conhecemos, como nos podemos amar se não nos conhecemos?

Vejamos com atenção: sabemos – pela nossa própria pessoa e na experiência dos outros – “a intemperança, a embriaguez e as preocupações da vida” dispersam-nos do essencial, faz-nos olhar para fora de nós ou para a periferia de nós. Daí a ânsia – quase desmesurada – a de fruir o mais possível, de fruir até ao limite. No entanto, não passam de sentimentos e de sensações porosas e momentâneas que geram um conjunto infindável de dependências que escravizam e esvaziam.

Pode até parecer que vivemos num estado de glória, mas não é outra coisa que uma glória vazia, uma vanglória. A vanglória – termo que provém do grego “kenodoksía” e que significa ‘glória vazia’, ‘glória que não alimenta’ – gera em nós a vaidade e, por conseguinte, esvazia a alma, suga a alma da oração. Aqui está o busílis da questão: podemos até pensar que somos capazes de nos olhar a nós mesmos sem máscaras, mas se olharmos atenta e verdadeiramente apercebemo-nos que não passamos de meras e insignificantes personagens onde – talvez outros ou outras forças – somos facilmente manipulados e condicionados. Esquecemo-nos, assim, de quem somos e do que estamos destinados a ser. Meus caros, esta é a grande problemática existencial dos nossos dias.

Portanto, ao afastarmo-nos do centro (do núcleo) somos continuamente arrastados para fora de nós na busca de sentido, na procura da nossa vocação, da nossa missão e do lugar de cada um na história da humanidade.

Assim se compreende a dificuldade de rezar, pois uma pessoa voltada para fora não consegue voltar-se para dentro e para Deus. Mesmo que haja real e autêntica vontade para rezar, o nosso olhar está condicionado, está toldado, uma vez que o nosso único contacto está no mundo sensorial e passional. Estamos aprisionados nesta busca de experiências sensoriais, queremos e julgamos que Deus está fora, que se faz sentir fora de nós como se de uma experiência empírica se tratasse, que se encontra nas agitações do mundo passional. O Padre Paulo Ricardo é muito sagaz ao afirmar que as pessoas que se encontram neste estado “estão presas no seu ego emocional, afetivo, carnal e material”.

Com efeito, o remédio para esta doença está na coragem de, primeiramente, se interrogar sobre este assunto e, posteriormente, com coragem e convicção, iniciar um caminho de ascese, de penitência, de sacrifício e de abnegação, a fim de renunciarmos a esta “intemperança, embriaguez e as preocupações da vida “que nos escravizam e esvaziam de sentido. Se inicialmente é um processo profundo e íntimo, e extramente doloroso, é-o, também, um processo de encontro connosco mesmos e com Deus, gerando, após este processo, uma alegria inefável e indizível.

Precisamos de mergulhar sem medo no interior de nós mesmos, no interior da alma, e afastarmo-nos deste mundo sensorial e passionista. O sentido da vida de cada um e o sentido do ser de cada um está no íntimo, na alma, onde me encontro, simultaneamente, comigo mesmo e com Deus, onde redescubro o meu real rosto, a minha real vocação e missão, a minha verdadeira identidade. Aqui se revela – tão clara e distintamente – que vivemos com muito pouco, que vivemos sem glória ou protagonismos, que vivemos sem a dependência do (muito) fazer, mas que nunca viveremos sem o amor. Como é belo isto! Não viveremos nunca sem o amor.

Na sua sapiente austeridade, Tomás de Kempis faz-nos a seguinte recomendação: “Considera isto, ó minha alma, e fecha a porta dos teus sentidos, para que possas ouvir aquilo que em ti diz o Senhor teu Deus” (In, “Imitação de Cristo”). Tenhamos, pois, a coragem de nos silenciarmos, de mergulharmos na nossa alma e, lá (na alma), nos deixarmos tocar pelo amor de Deus que imprime sentido e vida, que impede que nos tornemos indiferentes e insensíveis, ou toldados no nosso entendimento e, pior, com um coração pesado, vazio e frio.

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