Findamos, recentemente, o encantador e belíssimo período do Natal do Senhor. Este ano, em particular, na comunidade paroquial a mim confiada pela Santa Igreja, fui deveras surpreendido pela envolvência contagiante do povo de Deus em torno do Deus Menino. No dia solene do Natal do Senhor e na sua oitava, fomos agraciados com a bênção dos Meninos Jesus de todas as famílias na Santas Missas. A forma única como cada um, dos mais novos aos mais velhos, seguravam Deus Menino foi um regalo para a vista e para a alma. Esta sublime manifestação do santo povo de Deus inquietou-me, confesso. Como pode um Menino ser tanto em tão pouco? Como pode este Menino perturbar-me ao ponto de me colocar em questão, ao ponto de me questionar na e pela forma como sou e como vivo? Como pode este Menino suscitar em mim os valores mais nobres e sublimes? E, mais importante, como pode este Menino projectar-me para uma Palavra, para uma Promessa de vida e de esperança?
É precisamente esta última questão que mais gera significado ao significado da nossa vida. Pois, na doação livre (e diria, até, corajosa!) de Deus em dar-se, em se fazer um connosco, em ser um entre nós, não pela opulência ou pela magnanimidade segundo os critérios do mundo, mas nascer na maior pobreza e simplicidade possíveis e inimagináveis. Poderia Deus ter escolhido nascer em lautos e faustosos palácios, mas não. Escolheu o lugar mais periférico da existência e da sociedade de então. Mais, Ele que fora rejeitado em todas as casas humanas apenas encontrou ‘abrigo’ numa manjedoura, sob o acolhimento puro dos animais domésticos.
Isto inquieta e perturba. Como pode este ‘marginal’ ser tanto e tudo em nós? Deus tem o feliz hábito de nos desconstruir a partir das nossas certezas e matizes. É encantador! Por isso, o amor – o verdadeiro amor – implicará, sempre e de antemão, o acolhimento autêntico, simples e generoso do outro em todas as suas idiossincrasias. E, neste acolhimento, o acto de amar implicará, inevitavelmente, uma relação, uma relação dualógica e dialógica.
O médico psiquiatra, Dr. José Gameiro, escreveu a este propósito que “o amor é um sentimento, mas é, sobretudo, uma relação. Qualquer pessoa consegue descrever, mais ou menos, a sua relação de amor, mas não consegue explicar porque ama. O como é muito mais fácil que o sentimento. Os atributos que arranjamos para justificar que amamos alguém são facilmente destruídos quando a relação acaba ou balança, e quase nunca o “objeto de amor” mudou. Foi a relação que mudou ou foi mudando.” (Dr. José Gameiro, In. Expresso, nº. 2616, 16/12/2022).
Hoje, mais do que nunca, somos convidados a esta relação que se sente e que imana do Presépio de Belém. No abraço eterno do Menino Jesus, que, aliás, nas suas múltiplas representações iconográficas aparece sempre de braços abertos, desejoso de nos abraçar, de nos acolher n’Ele e, n’Ele acolhidos, compreender a vida como um abraço constante que a todos deve acolher e envolver, somos desafiados a pautar a nossa vida como uma história de braços abertos até ao abraço final na Cruz do Senhor Jesus.
Termino com a habitual sagacidade do senhor Cardeal D. José Tolentino Mendonça. Diz ele que “o Natal deixa-nos com um presente nas mãos: confia-nos um verbo para todos os dias do ano. E esse verbo é nascer. Um acontecimento que normalmente colocamos no princípio da vida e do qual pensamos que ocorre uma única vez. Ora, o Natal entrega-nos o verbo nascer como um programa de vida, um mapa sempre em aberto, sempre a ser refeito. O menino que o Natal celebra diz a cada um: “Agora nasce tu” (In. Expresso, nº. 2617, 23/12/2022).