O tempo santo da Quaresma é uma oportunidade, única e irrepetível, de mudança positiva nas nossas vidas. A santa Quaresma é, essencialmente, renovadora e transformadora da alma, transfigura-nos com o rosto de Cristo Jesus convidando-nos incessantemente à libertação do velho, da matéria, do ego, e para o nascimento de algo completamente novo e belo. Esta dinâmica de morte/vida e crucificação/ressurreição é uma tensão permanente neste tempo santo.
O princípio espiritual subjacente à santa Quaresma é de nos abrirmos ao dinamismo da graça. Todos nós somos movidos por alguma coisa ou por alguma razão. Por outras palavras, todos nós temos estímulos e motivações que nos levam quer para o mal, quer para o bem. Por isso, a Santa Igreja apresenta-nos uma tríade para mortificarmos a concupiscência da carne com a penitência, particularmente o jejum, a concupiscência dos olhos é combatida com a esmola, com o desprendimento dos bens materiais, e a soberba da vida é combatida com a oração. Este programa milenar apresentado pela Santa Igreja é, ainda, modelo para cada um de nós.
A concupiscência da carne é a lei regente da mundanidade. No grego clássico, “σαρξ” (sarx, que significa ‘carne’) “designa a condição de criatura, mas com (o Apóstolo São) Paulo este sentido deixa de ser já único: a carne pode designar não já, certamente, uma natureza má, mas sim a condição pecadora do homem” (Xavier Léon-Dufour, teólogo). O teólogo protestante, Fred Roland Bornschein, afirma que “σαρξ” (sarx) “não é algo no homem, mas é o próprio ser humano, na plenitude sua realidade ontológica, descartando a submissão a Deus e assumindo de forma arrogante o controle autónomo da sua vida”. Em síntese, “σαρξ” (sarx) representa o ser humano na sua dimensão de fragilidade. Assim entendemos que a expressão “Filho do Homem” –tantas vezes ouvimos da boca de Jesus nos Sagrados Evangelhos (!) – manifesta e revela fragilidade ontológica do homem. Por outras palavras, a concupiscência da carne é a alma carnal que se encontra dominada pelas necessidades do corpo e, sendo necessidades egoísta do corpo, e que busca, incessantemente, conforto e felicidade no prazer e na fruição material e mundana.
Este é o grande desafio do santo tempo da Quaresma: entrarmos no dinamismo amoroso da graça de Deus. Para isso precisamos de, pela dor e pela abnegação de nós mesmos como oferta a quem amamos, fazer nascer, no íntimo de nós, o dinamismo do amor. Sabemos que, espiritualmente falando, não há amor sem dor, como não há fé sem cruz. Queremos sempre fugir da dor e abraçar o prazer. É tão inato a nós que, incansavelmente, pedimos a Deus que nos livre dos perigos e da dor. Já repararam que na primeira aparição de Nossa Senhora aos Pastorinhos, a Virgem Maria pergunta aos pueris videntes se queriam oferecer-se a Deus, se queriam mortificar-se para Deus? Esta mortificação é, na verdade, um acto de inominável liberdade. Uma acto que nos desprende, que nos liberta e que nos projecta para mais além.
Sabemos bem que as coisas, o ter e a ânsia de mais possuir, prendem-nos, amarram-nos, torna-nos reféns das coisas, coartando a nossa liberdade de escolha e de decisão. Estamos condicionados. Temos percebido que só a pobreza evangélica, como desprendimento, nos permite ser autenticamente livres. O facto de nada termos ou de nada assumirmos como nosso, no sentido da pertença e da posse, torna-nos livres e independentes e gera em nós a autonomia.
Sem a oração, sem a penitência e sem o desapego não há salvação! Deus não dá sossego, dá a paz! Mas não nos deixa em paz porque temos que nos decidir por Ele em e a todo tempo.
A todos desejo uma santa e feliz Quaresma que, sob a intercessão do doce e belo Imaculado Coração de Maria, vos conduza à transformação (como uma nova forma) e à transfiguração (como uma nova figura) tão esperada e tão desejada por Deus.
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