A Páscoa é a expressão mais eloquente e mais visível do paradoxal e absurdo amor de Deus por cada um de nós, pela Humanidade, pela criação inteira. A tríade Paixão, Morte e Ressurreição, como uma única e mesma realidade, revela, na pessoa e na missão de Jesus Cristo, a abnegada solicitude misericordiosa de Deus.
Estamos habituados a pensar Deus e o seu Amor numa linguagem e visão antropocêntricas. Pensamos e falamos de Deus a partir das nossas categorias e dos nossos códigos de linguagem. Este modo de pensar, torna Deus num “deus” que “existe” para responder às nossas inquietações existenciais e ontológicas, às nossas solicitações de necessidade subjectiva e sensorial e às nossas projecções tenebrosas e cobardes. É um “deus” pensado do homem para o homem.
Mas porque dizer que “Deus é absurdamente carente de nós1”? Comecemos por uma leitura ligeira aos primeiros dois capítulos do Livro dos Génesis. O modo de criar e a própria criação faz do Homem um ser profunda e ardentemente desejado e querido. Esta visão genesíaca apresenta-nos um Deus que nos ama primeiro, que nos deseja primeiro, que nos quer primeiro. Como é belo isto! Antes mesmo de nós o amarmos, já sentimos o amor d’Ele. Fazemos uma experiência segunda do amor. Compreendemos esta linguagem na analogia entre o amor do pai/mãe com o/a filho(a). O amor do progenitor antecede o amor do filho. Aliás, o filho aprende amar no amor do pai. O amor é, pois, lugar de aprendizagem mimética que se apreende no feliz contágio do testemunho generoso e total do amante. Aprendemos amar e a ser amados no testemunho e no exemplo daquele ou daqueles que nos antecederam no amor e que nos convidam a entrar nesta esplêndida e inesquecível viagem do amor e da arte de amar.
Amar é, de facto, uma grande aventura. Nela descobrimos não só o que somos (a nossa natureza), como também o que estamos destinados a ser (a nossa vocação e sentido existencial). É uma corrente sem fim na qual cada um de nós entra. No amor entramos nesta longínqua e milenar corrente unitiva. Vinculados nela, somos como que os herdeiros de um dom maior do que nós, de um dom que nos projecta e nos define mais amplamente, um dom que nos redefine, nos transforma e nos transfigura.
Aqui chegados, percebemos o porquê desta expressão – Deus é absurdamente carente de nós. Como Pai/Mãe, Deus o que quer senão que o amemos na mesma medida que Ele nos ama? Como qualquer pai/mãe quer o(s) seu(s) filho(s) retribuam e vivam unidos ao mesmo amor que os une e vincula para eternidade. Assim também Deus Nosso Senhor se quer vincular a cada um de nós. Sucessivamente Deus faz alianças com a humanidade, concedendo novas oportunidades de integração e de vinculação unitiva. Como tão belamente dizia São Tomás de Aquino, “Deus não pode não amar” porque “Deus é amor e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1 Jo 4, 16).
N’Ele somos absorvidos num amor maior, num amor que nos faz sentir a razão fundamental das nossas vidas e das nossas existências. N’Ele a alma encontra o seu lugar e o seu sentido. E Deus quer ardentemente unir-se a nós. Mas precisa Deus disto? Não é Ele senhor de tudo e de todos? Não está acima de tudo? Pode ser Ele dependente? Sim, Deus precisa de nós como um pai precisa de um filho, pois nunca haverá pai sem filho. Não é um precisar no sentido da necessidade material. Antes, é um amor que quer ser partilhado, como que um fogo que nos é dado e insuflado na alma, um fogo que anima e revitaliza.
Gostava de terminar com a sugestão de leitura a desconcertante passagem bíblica do Livro de Génesis (capítulo 22) onde Abraão é testado na sua Fé e no seu amor. Vale a pena ler que, contra tudo o que é razoável e lógico, este homem leva o seu desejado e único filho para o sacrifício, transportando numa mão o feixe de lenha e na outra mão o seu filho (como se de um cordeiro para a imolação se tratasse), fazendo a analogia de Cristo que transporta a Cruz no seu caminho até ao Calvário, lugar que servirá de altar. Precisamos de reaprender e redescobrir a proximidade e a fusão unitiva do amor que tão magnificamente se expressa no entrelaçar de um abraço, onde os corações se tocam e se incendeiam de vida e de sentido.
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