A Palavra de Deus lança-nos perante o sofrimento e a dor do homem. A equação da vida faz-nos, inevitavelmente, reflectir sobre o sofrimento, sobre a dor, sobre o abandono, sobre o descredito, sobre a amargura e o desgosto da vida e do acto de viver. São tantos os ‘porquês’ que colocamos … tantas perguntas que ficam – aparentemente – sem resposta. Na verdade, quando eu coloco estes ‘porquês’ eu já estou a rezar. Sim, a rezar. A rezar porque me reconheço como criatura, porque me inquieto com o sentido que a minha vida está a tomar, porque não compreendo porque Deus se esquece de mim e, com isso, se abandona de mim, me faz caminhar só, desamparado e errante.
Para o homem de hoje, que procura controlar tudo e prever tudo, é-lhe difícil olhar para Deus. Simplesmente ele diz: “não compreendo a dor, não compreendo o sofrimento, Deus não existe”. O homem de hoje tem imensa dificuldade em viver a dor, em viver a negação ou a rejeição. Aliás, ele pensa que se a vida não for “festas e guitarradas” e/ou se não for a realização de tudo quanto quer, então este homem prefere a morte à luta, a lutar por si e pela sua vida. É caso para dizer que ‘este’ homem é um cobarde, um frouxo, um instável. Um homem assim nunca descobriu o sentido da vida e muito menos o sentido da sua própria vida. Temo que hajam muitas pessoas que ainda não tenham descoberto o seu próprio propósito e a sua missão própria nesta vida que é caminho em direcção ao Criador, que é ‘regresso’ ao seio de Deus, que é peregrinar seguindo a “Estrela que vem do oriente” (cf. Mt 2, 2).
Ao lermos com atenção o capítulo 10 de Job, versículos 1 a 10, constatamos que Job, tendo perdido tudo, não tendo nada e tendo sido desprezado por todos, volta-se para Deus. Deus não se torna indiferente perante a nossa dor ou a nossa alegria. Antes, Ele associa-se à nossa dor e sofrimento e envolve-nos em todos os instantes e momentos da nossa vida. Na verdade, o homem só encontra paz quando se abandona nas mãos de Deus. É isto mesmo que Job terá de aprender (e que cada um de nós terá de aprender, direi eu). Se estou agora em sofrimento, se estou agora abatido ou deprimido, tudo é para mim passa a ser penoso e doloroso, e o pior de tudo é que eu não sei (e/ou desconheço) o porquê. A minha alma torna-se, com efeito, num poço de tristeza. Mas uma coisa eu sei: tudo ponho nas Tuas mãos.
Na verdade, temos de re-aprender a lógica de Deus: Deus não é ilógico ou irracional! A questão de fundo, é entender que as nossas categorias de lógica e de racionalidade não são as categorias de Deus. Antes, elas são bem mais limitadas e bem mais finitas em comparação às categorias de Deus. É importante perceber isto. Mas então fica a pergunta: o que significa tudo isto? Onde se quer chegar com estas considerações e afirmações? Voltemo-nos novamente para o texto sagrado: “Job respondeu ao SENHOR e disse: «Sei que podes tudo e que nada te é impossível. Quem é que obscurece assim o desígnio divino, com palavras sem sentido? De facto, eu falei de coisas que não entendia, de maravilhas que superavam o meu saber. Eu dizia: ‘Escuta-me, deixa-me falar! Vou interrogar-te e Tu me responderás.’ Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti, mas agora vêem-te os meus próprios olhos. Por isso, retracto-me e faço penitência, cobrindo-me de pó e de cinza»” (Job 42, 1-6).
O primeiro plano de Deus para connosco não é outro senão terminar com o ‘nosso’ próprio plano. Depois de quebra-lo, de partir tudo, de estilhaçar tudo, Deus faz o seu projecto para nós com as Suas próprias mãos. Como isto é belo! Tudo isto nos faz recordar o Livro dos Génesis quando diz: “O SENHOR Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo” (Gen 2, 7). Deus volta a fazer do nosso entulho um projecto definitivo e pleno. Que sublime! Como pode Deus amar-nos assim tanto? Querer-nos tanto e expor-se tanto por cada um de nós? Estas questões assolam-nos o coração e respondem (a muitos!) ‘porquês’ da nossa vida.
Termino com a acutilância perturbante de Tiago Cavaco: “os lugares mais perigosos são as igrejas e ainda bem. Igrejas são, por excelência, locais de contágio. Entramos nelas de uma maneira e não saímos na mesma. Somos infectados e influenciados. Nessa medida, a pessoa não vai à igreja para manter a saúde mas perdê-la. Quem cresce a ir à igreja vive na mais abençoada experiência de despersonalização. E quando vamos perdendo a pessoa que somos, perdemos também o instinto de sobrevivência. Vivemos para poder morrer. E isso é muito importante. Não vivemos para nos mantermos vivos. Viver para nos mantermos vivos é provavelmente a forma mais triste de existência.” (In, Observador, 9/1/2022). Tenhamos a coragem de nos configurar com Cristo e, n’Ele, possamos nos confiar à sua infinita misericórdia.
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