Há dias que nos enchem, dias que nos perturbam positivamente, dias que nos libertam do marasmo quotidiano e dias que nos insuflam o sopro vital do espanto e do espasmo. Nesse mesmíssimo dia, ouvi o relato de uma mãe orgulhosa da sua filha. Em modo de partilha, ela contava-me que fora surpreendida pela sagacidade da sua menina quando afirmara que ela (e elas) eram ricas. Após alguma contenção, a mãe, cheia de curiosidade, não se conteve em perguntar à sua filha o porquê da sua decidida afirmação. E para espanto e espasmo dela (e meu, também!), a menina respondera que eram ricas – ela e a mãe – porque eram felizes! É fabuloso como esta criança associa o conceito e a noção de riqueza à felicidade. Como é difícil nos tempos hodiernos compreendermos e vivermos sob o signo da felicidade despojada, desinteressada, simples e autêntica…!
São estes corações simples e puros que nos dão sinais – e, até mesmo, alento (!) – para percebermos que a vida só é vida quando ela se deixa abraçar e envolver pelo genuíno afeto e pelo esvaziamento de si mesmo para que tudo e todos possam coabitar no interior do meu e do nosso coração. É interessante dizer a este propósito que, ao ler o relato bíblico da “sarça ardente” (cf. Êx 3,1-6), Deus relembra a Moisés a sacralidade daquele espaço: “Não te aproximes daqui; tira as tuas sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa (sagrada)”. É esta sacralidade que habita no interior do nosso coração, da nossa alma. Sempre que alguém recebe o convite de um outro para entrar na sua vida, estas divinas palavras deveriam ecoar no nosso coração e na nossa mente como se de um imperativo categórico se tratasse. Mais, o lugar que nos é dado entrar é um lugar santo, é um lugar sagrado, é o lugar onde habita e reside o nosso maior tesouro e a nossa maior riqueza. Abrir as portas do nosso coração não só é um acto de grande coragem como também o é de grande generosidade. O Senhor Jesus afirmava que “onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração” (Mt 6, 21). É mesmo!
Mário Cortella (filósofo e pedagogo brasileiro), falando acerca do tema da riqueza e das suas variabilidades conceptuais, laça a seguinte questão: “o que fazes para ganhar a vida?” Podemos entender esta perguntas sob duas variantes: a primeira, sob a variante económica e de subsistência; a segunda, sob a variante espiritual e ontológica. Se citarmos os valiosos ensinamentos de Nosso Senhor, particularmente Mt 8, 36, podemos ler que “de nada adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a vida (a sua alma)”. Por outras palavras, que adianta ter tudo se a tua identidade, a tua autenticidade, o teu propósito, isto é, se a tua verdade desaba, se ela é esmagada pelas cadeias aditivas do ter?! Esta frase bíblica perturba e incomoda no bom sentido. Ela gera em nós como que um imperativo, imprimindo sentido para o verdadeiro sentido da minha (e da nossa vida).
Afinal, qual é a minha riqueza, qual é o meu tesouro? Como acolho a riqueza e o tesouro que o outro, gentil e corajosamente, me oferece? Todas estas questões devem inquietar-nos. Não podemos (nem devemos!) ficar indiferentes! A verdadeira felicidade está quando compreendemos que a nossa maior (e única) riqueza está no doar do tesouro e no acolher o tesouro do outro. Suscitará, portanto, a consciência que somos e seremos sempre convidados, nunca senhores ou donos do outro. Aqueles sentimentos de doentia posse serão transformados em sentimentos de gratidão e de alegre generosidade.
É um enorme risco não viver a vida como dom e como uma riqueza que deve ser partilhada como Dom e Graça. Já Alexandre O’Neill, em “No Reino do Pacheco”, eloquentemente asseverava que “Às duas por três nascemos,/ Às duas por três morremos,/ E a vida?/ Não a vivemos”. Estamos proibidos de não viver.
Alias, espantosamente, na famosíssima Banda Desenhada que relata a vida de Charlie Brown e do seu amigo Snoopy, há um momento em que o Charlie, jovem de temperamento sempre melancólico e, até, melodramático, ao contemplar, na companhia do seu amigo Snoopy, uma deslumbrante vista sobre um lago, afirma: “Algum dia, todos nós iremos morrer Snoopy!” No entanto, a resposta de Snoopy é fabulosa: “Verdade, mas todos os outros dias não!” Sim, todos os outros dias não! Ousemos viver! Ousemos amar! Ousemos ser felizes! Eis a nossa riqueza! Sim, a nossa riqueza. Por isso exige-se que saibamos, com honestidade e em verdade, responder as seguintes perguntas: Que vida é a minha na vida dos outros e na vida de Deus? Que vida dou à vida da vida dos outros?
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